* Por Alana
Moraes
Tem
agora esse debate sobre a presença das mulheres no Funk (acho que mais no Rio
do que em São Paulo). Dizem que elas produzem um tipo de musica e movimento que
tem a ver com a interpretação das mulheres faveladas e das periferias sobre o
debate da autonomia do corpo. “A porra da buceta é minha” ou “ My pussy é o
poder” são os trechos preferidos d@s novos analistas, ativistas e estudios@s do
funk feminista. Esse movimento, que pretende não só analisar as letras e
postura estética do funk carioca, também tem uma posição politica que se resume
mais ou menos em dizer: “olha, feministas brancas-conservadoras-elitistas, a
Valesca Popuzuda merece a carteirinha de feminista e vocês ficam aí jogando
contra”.
É
um debate interessante. Primeiro porque, mais uma vez, a representação da fala
das “classes populares” é motivo de disputa e apropriação. Dizem que Valesca
canta a emancipação feminina, autonomia, o feminismo popular e eu me pergunto
primeiro se Valesca realmente se preocupa em ser ou cantar alguma dessas coisas
que dizem que ela canta ou é. Eu apostaria que não. E apostaria que, se Valesca
fosse uma cantora das classes médias e intelectualizadas, dariam muito mais
espaço para sua fala do que realmente dão aquel@s que querem produzir e
arquitetar em Valesca um projeto político. “Pode a Valesca falar?”, perguntaria
a feminista indiana Spivak.
Mas
o lado que aposta que sim, que Valesca é mesmo essa messias da mulher feminista
da periferia, manobra uma argumentação interessante para defender como
ela representa – é impressionante como o imperativo da representação precisa
ser ainda tão presente – a voz do “novo feminismo”. Defendem que Valesca vai no
coração do machismo, quando diz que a “porra da buceta” é dela. Que Valesca é
tudo aquilo que as mulheres feministas reprimidas não conseguem ser e que, por
isso, o feminismo não consegue reconhecer a linguagem subversiva do projeto de
emancipação da funkeira suburbana carioca.
Eu
não quero nada nessa reflexão além de levar a Valesca a sério. Isso quer dizer:
compreender o que Valesca quer dizer a partir do que ela diz. Parece ser uma
tarefa difícil para uma esquerda que cultiva a prática de dizer “aquilo que os
pobres querem dizer, mas não sabem muito bem como dizer”. No entanto, eles
sabem e têm a certeza de que os pobres e a cultura popular sempre dizem e sabem
a verdade sobre a emancipação humana. Não é fácil, minha gente, mas se quiserem
encontrar a verdade é melhor nem sair de casa.
Quando
@s nov@s estudiosos e ativistas da “cultura popular” afirmam que Valesca (e a
Gaiola das Popuzudas) é feminista porque diz que “my pussy é o poder”, ignoram
todo o resto da música e da história. Não sei se fazem isso pelo conforto de
sustentar um argumento, porque não estão com muita vontade de dar atenção para
o que ela diz, ou simplesmente porque lidar com a contradição é mesmo uma
tarefa trabalhosa pra quem quer mudar o mundo. A Valesca exige mais de nós do
que esse obreirismo paternalista crente de que existe uma “cultura popular”
para ser reconhecida e interpretada – como se a periferia não soubesse muito
bem como se representar politicamente.
Então
a moça diz (além de que buceta é dela, é claro) que “mulher burra fica pobre,
mas se for inteligente pode até enriquecer”, porque “por ela o homem gasta: dá
carro, apartamento, jóias, roupas e mansão. Coloca silicone e faz
lipoaspiração. Implante no cabelo com rostinho de atriz. Aumenta a sua
bunda pra você ficar feliz. (…) Minha pussy é o poder”. Não vou “interpretar” a
letra de Valesca porque defendo que devemos justamente contornar esse problema
da “interpretação” das vozes subalternas.
Quero
chamar atenção para o que Valesca diz justamente a partir do que ela diz. Quero
dizer que Valesca tem uma fala e que não pode ser desrespeitosamente ignorada
ou traduzida por mediad@res da “cultura popular”. A buceta é dela e ela faz o
que ela quer. E na música ela diz que mulher inteligente é aquela que usa o
poder da buceta para convencer o homem a oferecer um monte de coisas materiais
além de silicone e lipoaspiração. Beijo no ombro e durmam com essa, amig@s, mas
isso é justamente o que ela quer dizer. Em sua mais nova música “Beijinho no
Ombro”, Valesca abandona um pouco a pauta da buceta autônoma e se filia mais
claramente ao Funk ostentação (“Do camarote quase não dá pra te ver”), além de
combater “as invejosas” e “recalcadas”. Mas o debate sobre o Funk ostentação já
é outro papo.
Não
quero aqui classificar Valesca no termômetro do feminismo, até porque nunca
nenhuma feminista que eu tenha conhecido defendeu o uso desse termômetro em
nenhum momento da história. No entanto a relação entre “feminismo” e “Valesca”
parece não querer entender nem o que é o feminismo nem o que é a Valesca.
Existe um mal entendido contemporâneo sobre o feminismo (talvez por conta da
hegemonia liberal que ainda nos atinge) que procura fazer do feminismo uma luta
pela “autonomia” do corpo da mulher.
Ainda
que seja verdade, o feminismo é também uma luta por autonomia, nunca em nenhum
momento da história a autonomia foi uma pauta vazia no feminismo. Isso quer
dizer que a luta por autonomia sempre teve um sentido próprio para o feminismo:
autonomia do corpo para viver a sexualidade livremente, autonomia do corpo pra
escolher sobre ter filhos ou não, autonomia do corpo para poder viver livre dos
padrões de feminilidade imposto pela sociedade, autonomia para viver uma vida
sem violência.
Não
quero aqui classificar Valesca no termômetro do feminismo, até porque nunca
nenhuma feminista que eu tenha conhecido defendeu o uso desse termômetro em
nenhum momento da história. No entanto a relação entre “feminismo” e “Valesca”
parece não querer entender nem o que é o feminismo nem o que é a Valesca.
Existe um mal entendido contemporâneo sobre o feminismo (talvez por conta da
hegemonia liberal que ainda nos atinge) que procura fazer do feminismo uma luta
pela “autonomia” do corpo da mulher.
Ainda
que seja verdade, o feminismo é também uma luta por autonomia, nunca em nenhum
momento da história a autonomia foi uma pauta vazia no feminismo. Isso quer
dizer que a luta por autonomia sempre teve um sentido próprio para o feminismo:
autonomia do corpo para viver a sexualidade livremente, autonomia do corpo pra
escolher sobre ter filhos ou não, autonomia do corpo para poder viver livre dos
padrões de feminilidade imposto pela sociedade, autonomia para viver uma vida
sem violência.
* Alana Moraes é militante da Marcha Mundial de Mulheres do Rio de Janeiro.